"É." : conto por Pedro Marcos Queiroz

 É.

By Pedro Marcos Queiroz, 

03/01/2022.




    - “Vigie, cabo, seu turno acaba às 7hrs;”
    - “Assim como diz o senhor.” – Virou-se, fitou a cabine do superior com frieza e andou até a madeira-de-lei rubra da porta. – “E se tiver de o ser?”

    Um silêncio inefável prosseguiu-se de maneira lenta e dissonante. O próprio cabo o interrompeu: - “Será.” “Será, portanto”. 
   
    A ausência de som era apenas impedida pelo tilintar das cinzas do charuto do comandante caídos ao cinzeiro. Tal qual um mundo que já deixara de se preocupar em emitir ruído. Em ruir. Todas aquelas fotografias de antigos líderes, fotos remetentes de uma época precisa, de um momento que longe esteve, mas que como um rio de águas-correntes, é apenas um consigo mesmo. Não falamos em tempo depois de tudo que nos aconteceu. O tempo é conosco. Apenas é.

    A mão fina do cabo abriu a porta, abriu caminho para o corredor de saída daquela alcova: a hora chegara. O cabo então vigiaria, cumpriria novamente sua inatíssima função: vigiar, nunca intervir, nunca intervir e vigiar.

Aquele caminho conduzido lhe apresentou novamente a pureza bela daquele lado-de-fora. Enxergou ao longe uma rosa meio murcha e lembrou-se que odiava terminantemente flores de quaisquer tipos, por isso tornara-se cabo. Vislumbrou a luz do sol poente e recordou-se avidamente que tudo que mais lhe era execrável se tratava daquela luz rubra que fazia crescer a rosa tão maldita. Um músico que passava apressado, parecia faminto, desejou-lhe uma ótima noite: porque aquela haveria de ser uma longa e importante noite. O cabo observou-o com a grande certeza de que certamente aquele homem morreria de fome não por falta de comida, objetivamente. Mas de alimento. Calado, o músico seguiu sua viagem. O cabo também. Percebeu que também odiava o músico e toda sua laia, por uma ocasião de uma prosaica extensão do devir de seus rancores.

Chegando então ao seu posto avançado, o cabo acendeu um cigarro antes mesmo de sentar-se para assistir ao espetáculo que viria naquela noite: a própria noite. O cabo ultimamente gostava das noites, daquele vento que parece mais querer-nos desnudos, que parece amar conhecer cada poro que treme diante da imensidão do próprio vento. Então sentou.

Ao longe, na cidade, objeto da vigília do homem-cabo, irrompia a batalha, a aurora pertencente a todos os velhos homens dos porta-retratos da sala do superior. Ao longe se via sobre o que tudo se trata. Fumaça, gritos, a marcha militar da eternidade ressoava como uma cantiga de ninar outrora esquecida. Nada continuaria o mesmo após tudo aquilo. E o cabo, odiara um dia, também tudo aquilo. Assistindo, recordou-se da época em que não se alistara ainda. Lembrou-se de seu piano, de seu caderno de sonatas, de sua barba malfeita e de seus fartos cabelos. Lembrou-se de sua amada, das caminhadas à tardinha e das rosas murchas que colhia e que ao serem entregues à genuína dona, nada de murchas mais tinham. Perdera tudo, odiara um dia tudo aquilo. 

    Então alistou-se. Alistou-se para vigiar, nunca intervir, nunca intervir e vigiar. E cumpria sua função. 

    Tragou o cigarro e falou consigo mesmo: - “Portanto o Será teve de Ser. Teve de ser e o Foi.”- 

    Pouco depois, as sete horas chegaram trazendo o calor do sol. O trabalho por hora acabara. Apenas por agora. Ainda haveria muito Ser a odiar na vida daquele cabo. E o faria incondicionalmente, sem hesitar ou questionar.

(queiroz, 2022).





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