As Agulhas: conto por Pedro Marcos Queiroz

 As Agulhas


By Pedro Marcos Queiroz, 

12/11/2021.






    Longe ao céu se viam longas, esparsas e imensas agulhas que perpassavam as nuvens e contrastavam com o descrente alaranjar do anoitecer. De tudo que se vira até então, nada se comparava à grandeza do torpor contemplativo aos que vinham inocentemente provar intrinsecamente sua existência. Mas qual é a tal imensidão do homem que não se afeta pelo torpor, que se aproxima, que incide luz de maneira direta no vazio que demonstra afirmadamente decisões de o destruir? Qual a imensidão de um homem que demonstra afirmadamente decisões de autodestruir-se? Hão limites?

    Não havia sequer um limite para K. Este naquela tarde de outubro, elevou os baixos e vermelhos olhos para o sol em descensão, para os tais colossais dedos que riscavam aquele céu de quase-verão e correu, correu como se não houvesse amanhã, mesmo que, de fato, não haveria. Não havia nada a se perder, nada a se ganhar com aquilo, K. continuaria sendo apenas K. Ali autossintetizava-se a derradeira imensidão lusidíaca de K. 

    Eis-vos um mundo morto: painéis negros distribuíam-se por todos os locais: a um curto e simples movimento de um reles dedo, mais códigos, mais zeros e uns e uns e zeros, o conteúdo referente a esses códigos já não carregava consigo significado algum. Um mundo no qual o que foi, o que já não passa nas telas está nas mãos de quem nasceu para tê-los nas mãos, somente. Já não se vê o rosto humano, já não se vê o rosto humano. Algo completamente passível de ocupar as últimas palavras de tal texto: Já não se vê o rosto humano. Todos aqueles que sentem, sentiram apenas uma vez. Sentir traz a possibilidade de estar em angústia e em questionar. 

    Hoje o mundo todo não sente mais. Hoje o mundo todo vive em um uníssono métrico, em um intervalo harmônico nunca ouvido na história, em uma busca inconcebível pelo que não veio, não virá e não vem. 

    Verdadeiras máquinas se prostram atrás de mesas de granito preto, escrevem em papéis advindos de máquinas, atendem através de suas academias de máquinas, prescrevem como máquinas e pouco a pouco formam seu vil exército de máquinas. E eis-vos o sentimento que primeiro foi extinto, que por redundância explica todos os outros: que mais nos faz questionar o que seja, inclusive nós mesmos, que não seja o amor? Mas qual é a tal imensidão do homem que não se afeta pelo amor, que se aproxima, que incide luz de maneira direta no vazio que demonstra afirmadamente decisões de o destruir? Qual a imensidão de um homem que demonstra afirmadamente decisões de autodestruir-se? Hão limites?

Não havia sequer um limite para K. Este naquela tarde de outubro, elevou os baixos e vermelhos olhos para o sol em descensão, para os tais colossais dedos que riscavam aquele céu de quase-verão e correu, correu como se não houvesse amanhã, mesmo que, de fato, não haveria. Não havia nada a se perder, nada a se ganhar com aquilo, K. continuaria sendo apenas K. Ali autossintetizava-se a derradeira imensidão de K. 

Então correu K., correu em direção do que vinha do externo, pois nada internamente corroborava mais algum sentido à toda aquela podridão existencial. Arrancou em direção do desconhecido, em breve haveria uma esperança, mesmo que ínfima. K. em sua correria viu um grande vão, meio vermelho, meio marrom. Desceu uma longa escadaria do século XIX, adentrou-se num grande túnel de luz, de todas as cores: nesse momento percebeu que emitia um brilho branco magnífico, o que o motivou a apertar o passo, mais depressa ainda.

     Passou por um grande campo de grama seca, encontrou pessoas que conheceu, mas que não conhecia. O céu não tinha nuvem alguma passeando de cá para lá. 

Chegou enfim a uma praia deserta, a areia branca como farinha, a água era suja, bolorenta, de um marrom escuro opaco.  O vendaval desdenhava dos cabelos longos de K., a areia vinha aos olhos, e não havia abrigo: Algo que não impediu de perceber que em tal praia aconteceria o encontro derradeiro da vida dele. Os dedos atravessavam as nuvens pesadas e desciam, magistrais, naquele fim de tarde, naquela tarde nublada, naquela praia doente.

K., naquele momento paralisou de medo pela primeira vez em sua vida. Uma benção, um presente, nunca esperado e nunca visto antes, uma gratificação por sua tremenda coragem em simplesmente sentir medo. K.  pela primeira vez em sua vida se deu conta da pequenez de sua imensidão. 

Dos Dedos desceram criaturas que nos fogem das considerações linguísticas. Eram e não eram. Mas apenas eram. E não eram. Uma delas se moveu sorrateiramente e conduziu a K. palavras de conforto, palavras que ressoaram ali e continuariam ressoando por todo o resto da eternidade e além. 

“Bem-vindo novamente, K. Fale-nos mais sobre isso. Sobre tudo isso”.

Tempos depois, aquele mundo já não sofria ameaça de alguma agulha, de algum dedo. Já durante a noite, tudo havia voltado ao mais tremendo normal. K., no entanto nunca mais foi visto.

Comentários